Nzinga Mbandi a N’gola Kiluanji, do mito à realidade.
Resistindo durante 40 anos à ocupação colonial e ao comércio de escravos, Nzinga, rainha do Ndongo e da Matamba, tornou-se um símbolo da luta contra a opressão, passando, por isso, a fazer parte do imaginário histórico e cultural de Angola.
O próprio nome Angola, derivou de os Portugueses chamarem ao reino de Nzinga, de N’gola, um erro, já que N’gola era a designação dada aos reis do Ndongo.
Mas entre a realidade e o mito muitas vezes a linha é ténue, por isso vamos aqui, fazer um resumo histórico, do que se conhece de facto da sua vida, deixando o mito “ficar para a história”.
O início
Supõem-se que Nzinga tenha nascido em 1581/2, sendo descendente da família real do Ndongo, um estado vassalo do Reino do Kongo, situado a leste de Luanda entre os rios Kwanza e Lucala.
Kengela, a mãe de Nzinga, era de família nobre e, como de costume, foi oferecida como presente ao rei do N’dongo, Mbandi a N’gola Kiluanji, tornando-se na sua principal concubina.
Existe, no entanto, outra teoria quanto à origem da mãe de Nzinga. Supostamente, ela seria uma escrava. Esta é a teoria mais provável, devido às discussões acerca do direito de Nzinga ao trono do Ndongo.
Mbandi a N’gola Kiluanji teve quatro filhos, com Kengela, incluindo Nzinga. Segundo reza a lenda, Nzinga nasceu com o cordão umbilical em volta do pescoço e tê-la-iam “girado” para não morrer à nascença. Como em Kimbundo, kuzinga significa girar, teria daí vindo o seu nome.
A sua família testemunhou a chegada da missão portuguesa, em 1560, e a invasão das tropas de Paulo Dias de Novais, em 1575. Nos anos seguintes, ataques de inimigos internos e externos marcariam a infância de Nzinga.
No início, as relações entre os reis do Ndongo e os conquistadores Portugueses eram amistosas, marcadas pela troca de presentes e livre acesso de comerciantes às feiras de escravos no território africano.
Porém, a situação modificou-se quando Paulo Dia de Novais tomou posse de terras do reino do Ndongo, despertando a ira do rei Kasenda, avô de Nzinga, que ordenou o assassinato de quarenta Portugueses no seu território.
A ascensão de Nzinga
Foi durante o reinado de seu irmão, N’gola Mbandi (1617-1624), que Nzinga se impos e ganhou notoriedade política. No seu reinado, N’gola Mbandi enfrentou ataques dos Portugueses, sendo que, em duas ocasiões (1617 e 1621), teve que fugir para garantir a segurança da sua família.
Em 1621, João Correia de Sousa, substituiu o bélico e impaciente Luís Mendes de Vasconcelos como governador de Luanda. Percebeu logo que havia interesse em negociar a paz com N’gola Mbandi, visto que manter uma relação amigável com o soberano do Ndongo era condição importante para garantir o fluxo de cativos que alimentava o tráfico negreiro e financiava a conquista portuguesa.
Com isso em mente, decidiu enviar ao Ndongo uma pequena embaixada chefiada pelo padre Faria Barreto que, fazendo-se entender bem no dialeto local, prometera a Mbandi a proteção por parte dos Portugueses em troca da evangelização dos seus súbditos.
Em 1622, com o intuito de prosseguir as negociações, N’gola Mbandi nomeou a sua irmã Nzinga como líder de uma delegação para negociar a paz. Com esse feito, Nzinga tornou-se o primeiro membro da família real do Ndongo a ser recebido em Luanda.
A empreitada até Luanda ficaria para sempre nos anais da colonização portuguesa. Com um enorme séquito, faz-se anunciar de tal forma que foi recebida com honras de descargas de mosquetes e instalada num dos grandes palacetes da cidade. Apesar disso, o governo português não estava disposto a tratá-la de igual para igual.

No momento em que entrou no magnífico salão onde seria recebida por João Correia de Sousa, viu que havia uma cadeira num palanque para o governador e que, para ela, estava reservado um espaço sobre um tapete onde tinham colocado umas almofadas. O arranjo servia claramente para a rebaixar perante o seu interlocutor.
Nzinga, não se intimidou, por isso, no exato momento do encontro com o governador, ordenou a uma das suas acompanhantes que se depusesse de quatro no salão e sentou-se nas suas costas de forma a conversar cara a cara com Correia de Sousa.
A atitude foi tomada perante os Portugueses, como uma tal exibição de autoridade que, os levou a prosseguir os debates com subtileza suficiente, para que não se rompesse o ténue fio de uma paz que estava longe de estar garantida.
Como parte das negociações, Nzinga aceitou ser batizada, sendo essa ação, muito provavelmente, uma estratégia política. Foi batizada com o nome Ana de Sousa, porque Ana era o nome da mulher que lhe serviu de madrinha e Sousa era o apelido do governador.
A subida ao poder
Para assegurar o acordo entre os Portugueses e o Ndongo, N’gola Mbandi teria que se converter ao cristianismo, no entanto o seu irmão, recusou-se a ser batizado, pondo em risco a ténue paz alcançada por Nzinga.
Misteriosamente, N’gola Mbandi morre em 1624, após a recusa do batismo, Nzinga, que tinha então 42 anos, assumiu o trono, tornando-se a primeira mulher a governar o reino do Ndongo.
Enfrentou forte oposição, devido ao seu sexo e à sua origem já que ela era apenas meia-irmã de N’gola Mbandi. Por outro lado, a tradição ambunda excluía mulheres de cargos políticos, especialmente o de N’gola a Kiluangi, ou seja, o de Rei.
O fato é que, após a morte de N’gola Mbandi, talvez arquitetada por Nzinga, esta enfrentou a árdua tarefa para consolidar o poder contra inimigos internos e externos. Gradualmente, eliminou possíveis opositores, além de outros parentes, não hesitou em assassinar o próprio sobrinho o legítimo herdeiro do trono, procurando a sua legitimação com a celebração da sua união com o imbangala Kasa.
A resistência aos Portugueses
Entre os anos de 1624 e 1663, Nzinga lutou incansavelmente para legitimar a sua posição como rainha, reestabelecer a hegemonia do Ndongo e limitar o poderio português na região. Em 1629 Nzinga conseguiu escapar a uma invasão das forças portuguesas ao seu kilombo, graças à sua habilidade guerreira e ao conhecimento privilegiado do território local.
Contudo, durante essa invasão, os Portugueses capturaram membros de sua corte, incluindo as suas irmãs Kambu e Funji. Durante os anos de cativeiro em Luanda, Kambu e Funji “aceitaram” o batismo e receberam os nomes cristãos de Bárbara e Graça.
Em 1631, casou-se com o líder imbangala Kasanje que, em troca, se juntou à resistência contra os Portugueses. A união abriria um novo capítulo na trajetória de Nzinga através de sua transformação em guerreira imbangala. Essa transição foi parte de sua estratégia para libertar as irmãs e lutar contra N’gola Hari, o rei do Ndongo nomeado pelos Portugueses.
Foi durante esta fase que Nzinga decidiu que queria ser tratada como se fosse um homem. Os Portugueses em Luanda receberam a notícia da adesão de Nzinga aos imbangalas com preocupação pois conheciam de perto a violência desses guerreiros.
Entre 1631 e 1635, Nzinga conquistou a região da Matamba que, ao contrário do Ndongo, tinha tradição de lideranças femininas. Além disso, a Matamba era um dos principais fornecedores de escravos para os Portugueses e ao conquistar esse reino, cortou o “suprimento” aos Portugueses.
O período Holandês
O controle de Nzinga sobre a Matamba foi essencial para garantir os meios necessários para organizar a resistência e atrair aliados. Entre esses aliados, estavam os Holandeses, que com a ajuda das tropas imbangalas de Nzinga, conquistaram Luanda em 1641.
Em 1646, os Portugueses conseguiram chegar ao kilombo de Nzinga mesmo com a resistência montada pelas suas forças, constituída por guerreiros imbangalas e por tropas holandesas.
As tropas portuguesas encontraram no local cerca de 500 armas de fogo, grande quantidade de tecidos importados e joias, além de cartas escritas pelos aliados de Nzinga, incluindo a sua irmã Funji e Garcia II do Kongo.
As cartas de Funji eram de particular importância, pois informavam sobre as estratégias militares portuguesas. Funji foi acusada de espionagem e em 1647, foi morta pelos Portugueses em Luanda lançando o seu corpo ao Rio Kwanza.
Apesar destes reveses, a batalha pelos reinos do Ndongo e da Matamba, parecia estar perdida para os portugueses. No entanto, com a chegada do Rio de Janeiro, de Salvador Correia de Sá e Benevides, a Luanda em 1647, trazendo consigo uma armada de 14 navios e 900 homens, o rumo dos acontecimentos virou-se a favor dos Portugueses.
Imediatamente após o seu desembarque, Salvador Correia, bombardeou Luanda e enviou uma embaixada para negociar a rendição dos holandeses. Quando as forças de Nzinga se aproximaram para socorrer os seus aliados, o pacto já estava selado e as autoridades holandesas haviam deixado Luanda.
A capitulação
Com os aliados holandeses fora de cena, entre os anos de 1648 a 1656, Nzinga procurou uma solução pacífica para o conflito. Dessa feita, usou um novo recurso na sua política diplomática, encontrar um acordo intermediado por padres e missionários capuchinhos capturados nas batalhas e que viviam em relativa liberdade na sua corte.
Através dos capuchinhos, Nzinga esperava não apenas convencer os Portugueses, mas também sensibilizar o Vaticano a seu favor. Como parte desse esforço, Nzinga escreveu cartas ao Papa Alexandre VII e ao Palazzo di Propaganda Fide, em Roma, nas quais prometia retornar ao cristianismo e solicitava missionários para esse intento.
Mais uma vez Nzinga mostrava a sua habilidade política, ao buscar apoio da maior autoridade do cristianismo. Após anos de espera por uma resposta, em 1654, o Vaticano aprovou o pedido de Nzinga e enviou missionários pedidos, dentre os quais estavam os padres António da Gaeta e Giovanni António Cavazzi.
Em 1654, Nzinga enviou uma embaixada a Luanda pedindo a libertação da sua irmã, Bárbara (Kambu), propondo pagar pelo seu resgate. Ademais, prometia retornar para a fé cristã e abandonar as práticas imbangalas, duas condições que ela se havia negado a aceitar em negociações anteriores.
As promessas de Nzinga demonstravam certa vulnerabilidade, provavelmente, devido à sua idade avançada e ao receio pela vida de Bárbara. Nzinga tinha então 74 anos e era seu desejo que a sua irmã lhe sucedesse.
Mesmo diante dos protestos dos jesuítas e da câmara de Luanda, que desconfiavam das intenções de Nzinga, o governador Chichorro deu ordens para que Bárbara fosse libertada em Abril de 1656.
Com base no tratado de paz, que foi negociado com o auxílio do Padre Gaeta, Nzinga comprometeu-se a retornar à fé cristã, permitir o acesso de comerciantes ao seu território e a pagar 130 escravos pelo resgate de sua irmã.
Por seu lado, os Portugueses, concordaram em devolver as terras pertencentes ao reino do Ndongo e dos súditos de Nzinga capturados por Kasanje e N’gola Hari.
Nos últimos sete anos da sua vida, numa jornada política e espiritual, Nzinga preparou a sua sucessão e a transformação do Ndongo/Matamba em um reino cristão. Nesse processo, ordenou a construção de igrejas e desfez-se dos objetos rituais das tradições ambundo/imbanga.
Além disso, Nzinga perseguiu líderes religiosos tradicionais (ngangas e xingalas), muitos dos quais foram vendidos como escravos para as Américas. Apesar das medidas radicais tomadas por Nzinga, em 1659 apenas 4 mil indivíduos tinham sido batizados numa população de cerca de 200 mil.
Morte
Apesar dos esforços dos capuchinhos, elementos da tradição ambundo/imbangala continuaram a coexistir com o cristianismo no Ndongo. A própria Nzinga quando adoeceu, em 1663, foi acompanhada por padres católicos e curandeiros tradicionais.
Faleceu na manhã de 17 de Dezembro de 1663, logo após ter recebido a extrema unção, do padre Cavazzi.
O relato do funeral de Nzinga evidencia a convivência, ainda que por vezes conflituosa, de elementos cristãos com a tradição ambundo/imbangala na sua corte. Enquanto o ritual cristão era celebrado, o corpo de Nzinga permaneceu coberto com tecidos coloridos vindos da Costa da Mina, ao mesmo tempo que soldados dançavam alegremente ao som de instrumentos ambundos.
A sua tumba foi preparada com objetos pessoais, incluindo tecidos importados e joias, como recomendado pela tradição ambundo. A convivência de diferentes culturas na corte de Nzinga evidencia que elementos de uma sociedade luso-africana já se encontravam presentes no século XVII.
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Imagem: © 2022 Francisco Lopes-Santos